Logo após o recesso de fim de ano, o presidente Jair Bolsonaro disparou: “O Brasil está quebrado, chefe. Eu não posso fazer nada”. Após a repercussão, o próprio mandatário procurou minimizar, com outra frase: “O Brasil está uma maravilha”. As declarações do presidente não tiveram maiores consequências econômicas, mas deixaram claro o desafio fiscal a ser encarado, em 2021, pelo governo federal. E o problema exige um encaminhamento no início de fevereiro, quando o Congresso Nacional reinicia os trabalhos, após a eleição para a presidência da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
Será preciso muita negociação. Especialistas ouvidos pelo Correio esclarecem que o país não está tecnicamente quebrado a ponto de dar calote, mas não tem margem orçamentária para ampliar os investimentos públicos ou tirar do papel planos como o programa social Renda Brasil.
Publicidade
O governo não tem brecha para destravar muitas das ambições de Bolsonaro porque 93,7% das receitas públicas estão comprometidas por despesas obrigatórias, como o pagamento dos benefícios previdenciários e dos salários do funcionalismo neste ano. E os 6,3% que sobram do Orçamento de 2021, praticamente, só permitem o custeio da máquina pública. Por isso, a proposta orçamentária do governo já está no limite do teto de gastos — emenda constitucional que limita o crescimento das despesas públicas à inflação. Logo, não sobra margem de manobra para o governo encaixar novas despesas dentro do espaço estipulado pelo teto.
Só os benefícios previdenciários, por exemplo, custarão R$ 710,4 bilhões, já que os impactos esperados com a reforma da Previdência serão sentidos em maior parte em longo prazo. As despesas de pessoal e os encargos sociais, que são alvo da proposta de reforma administrativa, levarão mais R$ 335,7 bilhões. E as demais despesas obrigatórias, como o seguro-desemprego, o abono salarial, o Bolsa Família e o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), comprometerão mais R$ 419,2 bilhões do Orçamento de 2021, segundo a última versão da proposta orçamentária, apresentada no fim de 2020 pelo Ministério da Economia.
“Neste ano, 93,7% do Orçamento do governo estão comprometidos por despesas primárias obrigatórias. E, nas despesas discricionárias, estão as despesas de manutenção do governo, como as despesas de água, luz e telefone, além dos investimentos, que já estão comprimidos há muitos anos. Por isso, o espaço de remanejamento do governo é praticamente inexistente”, explicou o secretário-geral e fundador da Associação Contas Abertas, Gil Castello Branco.
Diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, Felipe Salto acrescentou que as despesas discricionárias representam apenas 1,07% do Produto Interno Bruto (PIB), um patamar “baixíssimo” historicamente. Em 2019, quando o governo foi alvo de protestos porque contingenciou as despesas discricionárias para cumprir a meta fiscal, reduzindo os gastos da educação e até da emissão de passaportes, por exemplo, havia quase o dobro de recursos disponíveis para esse tipo de gasto: R$ 164,2 bilhões, o equivalente a 2,26% do PIB.
Porém, o volume de despesas discricionárias, deste ano, pode ficar ainda menor. É que, depois desses cálculos, Bolsonaro elevou para R$ 1.100 o salário mínimo. E o mínimo baliza o valor de diversos benefícios sociais e previdenciários. Por isso, o reajuste deve impactar em cerca de R$ 4 bilhões o Orçamento de 2021, segundo a pasta de Economia. “Gastos obrigatórios maiores vão requerer cortes em outros gastos (discricionários, provavelmente) para que o teto seja cumprido”, pontuou o diretor-executivo do IFI.
Especialistas temem, então, que os recursos disponíveis para o custeio da máquina pública não sejam suficientes neste ano, o que levaria o país ao risco de shutdown (paralisia) e sepultaria de vez a possibilidade de o governo destravar alguns de seus projetos dentro dos limites orçamentários. “Considerando um volume seguro de despesas discricionárias que não leve a riscos de paralisações em serviços essenciais, há uma insuficiência de R$ 11 bilhões para o cumprimento do teto”, calculou o superintendente de Pesquisa Macroeconômica do Santander Brasil, Maurício Oreng.
Teto de gastos
O teto de gastos foi criado em 2016 com o intuito de travar o crescimento dos gastos públicos, que ameaça a sustentabilidade fiscal brasileira desde 2014 e explodiu novamente com a covid-19. Porém, ele está na berlinda, neste ano, porque cresceu menos do que as despesas do governo em meio à pandemia.
Segundo a emenda constitucional que criou o teto, essa trava é reajustada pela inflação acumulada em 12 meses até junho do ano anterior ao Orçamento. Até meados do ano passado, no entanto, a carestia ainda estava sob controle e acumulou 2,13%. Com isso, o teto de gastos subiu R$ 31 bilhões, de R$ 1,454 trilhão para R$ 1,485 trilhão. O limite já era exatamente igual às despesas sujeitas ao teto estimadas para este ano, o que deixava o governo, pela primeira vez desde 2016, sem margem para alocar mais alguma coisa dentro do Orçamento. E, agora, está ainda mais pressionado. É que, depois de junho, a inflação acelerou por conta da alta dos alimentos, fazendo com que o reajuste do salário mínimo e dos benefícios previdenciários fosse além do aumento do teto: 5,26%.
“O crescimento do teto de gastos foi muito pequeno neste ano. E o salário mínimo cresceu mais do que o esperado, colocando pressão sobre a Previdência. A pressão não esperada é grande em um orçamento que já estava muito apertado, sem contar com discussões que podem vir à tona, como a da prorrogação do auxílio emergencial”, explicou o economista-chefe da MB Associados, Sergio Vale. Ele disse, então, que o governo vai precisar cortar gastos para conseguir manter o teto de gastos de pé. Secretário especial de Fazenda, Waldery Rodrigues já admitiu que a possibilidade de contingenciamento não está descartada em 2021.
Pressão
Apesar da falta de espaço fiscal, o mercado acredita que será grande a pressão por novos gastos. Afinal, a pandemia da covid-19 ainda pode exigir despesas públicas, seja para garantir o combate e a vacinação contra a covid-19 ou para amparar os brasileiros mais vulneráveis. E, também, porque não são poucos os ruídos no governo em relação à limitação dos gastos públicos.
Por isso, cresce o entendimento que será difícil manter o teto de gastos em 2021. A Instituição Fiscal Independente, por exemplo, já avisou que o risco de rompimento do teto de gastos é alto e acredita que essa possibilidade aumenta a cada dia. “Para ter o teto cumprido, já tem um nível tão baixo de despesas discricionárias que o país pode ter políticas essenciais não sendo executadas por falta de recursos. Há um risco de descumprimento do teto de gastos porque pode haver a necessidade de mais gastos, em razão da vacina contra a covid-19 ou o auxílio aos mais vulneráveis, por exemplo”, alertou Felipe Salto.
Cortes impopulares
O rompimento do teto de gastos, contudo, terá seu custo. O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, já avisou que a medida ou qualquer outra contabilidade criativa que mantenha a trajetória de crescimento do endividamento público vai aumentar a desconfiança do mercado em relação à sustentabilidade das contas públicas brasileiras. Por isso, pode afastar ainda mais investidores do país, o que elevaria o dólar, pressionaria a inflação e exigiria um aumento da taxa básica de juros (Selic).
Secretário-geral e fundador da Associação Contas Abertas, Gil Castello Branco explicou que o teto de gastos tornou-se o símbolo da austeridade fiscal no país, sobretudo durante a pandemia de covid-19, já que as duas outras regras fiscais — a de resultado primário e a da regra de outro — já não têm controlado o crescimento do endividamento público.
Do ponto de vista primário, o governo já não tem superavits primários desde 2014. E, para este ano, prevê mais um deficit de R$ 247,1 bilhões nas contas públicas. Devido à pressão dos gastos obrigatórios, a perspectiva é que as despesas continuem superando as receitas do governo até, pelo menos, 2023. Por isso, até lá, o Brasil vai continuar precisando se endividar para cobrir esse rombo. Além disso, o Executivo já avisou, na proposta orçamentária deste ano, que tem uma insuficiência de R$ 453,7 bilhões para o cumprimento da regra de ouro, mecanismo que impede o governo de pagar despesas correntes via endividamento.
A equipe econômica tem defendido de forma enfática a manutenção do teto de gastos e afastado quaisquer propostas que ameacem a regra, como os pedidos de prorrogação do estado de calamidade pública e do auxílio emergencial. O ministro Paulo Guedes tem pedido, então, que, em vez de discutir alternativas ao teto, o governo e o Congresso avancem com medidas que quebrem o piso dos gastos. Isto é, liberem espaço no Orçamento para os programas defendidos pela classe política e pela sociedade. A proposta, porém, passa por cortes de gastos impopulares, como aqueles que são propostos pela PEC Emergencial e pela reforma administrativa. Por isso, tem andado a passos lentos no Congresso e virou pano de fundo da disputa pela presidência da Câmara.
Menos custoso
Especialistas, no entanto, dizem que quem quer que ganhe a eleição interna da Câmara e do Senado vai ter que encarar esse assunto. É que, no entendimento do mercado, é menos custoso cortar despesas do que furar o teto de gastos, por conta dos riscos já apresentados pelo presidente do BC e do alto grau de endividamento público brasileiro. Em 2020, por conta dos gastos emergenciais da pandemia da covid-19, as contas públicas brasileiras sofreram um deficit inédito, superior a R$ 700 bilhões. Por isso, o endividamento público disparou para cima dos 90% do PIB.
“A regra do teto de gastos precisa ser reformada, mas isso não deve ocorrer agora, talvez no próximo mandato. Agora, não, porque teria um impacto grande no mercado e geraria um componente eleitoral negativo. Então, não vai ter como fugir, o governo vai precisar mexer nos gastos, cortar na carne”, avaliou o economista-chefe da MB Associados, Sergio Vale. (MB)